Todo mundo me cobra de uma história que ocorreu há alguns anos, no fatídico dia em que decidi vender meu carro, que a partir daquele dia começou a ser "carinhosamente" chamado de Christine pelos meus amigos.
Nunca havia postado aqui porque imaginei que a história era longa demais para um post, e é o tipo de relato que, pela riqueza de detalhes, não permite síntese. Mas a cobrança é tanta que decidi que iria postar assim mesmo, até porque faz muito tempo que não aparece nada na sempre popular seção de
AUTOBIZARROGRAFIA. Enfim, desculpem o texto quilométrico, mas o fato é que...
... um dia, decidi que iria vender meu carro.
Comentei isso para minha esposa enquanto estávamos dentro do carro, a caminho de algum lugar. E aqui vai uma lição: carros são criaturas muito sensíveis, temperamentais e vingativas. Se você está pensando em se livrar do seu, não comente – mande um bilhete. De preferência em um envelope. Se possível, lacrado.
O chamado Efeito Borboleta diz que o bater de asas de uma pequena borboleta pode influenciar o curso natural das coisas a ponto de causar um tufão do outro lado do mundo. Se isso sempre me soou meio extremo, eu nunca havia pensado no potencial de destruição que se esconde dentro que uma insignificante lâmpadinha, daquelas que iluminam o interior do seu carro quando você abre a porta. Quer dizer, nunca havia pensado nisso até esquecer essa luz ligada quando estacionei na garagem do meu prédio naquela gélida noite de quarta-feira.
No dia seguinte, quinta-feira, desci até a garagem e, claro, a bateria do carro estava arriada. Após um breve porém pitoresco acesso de cólera, chamei o zelador e o porteiro do prédio para que me ajudassem a manobrar o carro até a rua (uma descida íngreme), o que me permitiria fazer com que ele pegasse “no tranco”.
Aí, eu poderia aproveitar o fato de ter uma loja especializada em baterias automotivas bem no final da minha rua para ter um diagnóstico profissional quanto aos danos. Afinal, um pouco de prudência nunca fez mal a ninguém e eu não queria descobrir que a bateria não estava funcionando bem na hora de voltar para casa..
O zelador e porteiro me ajudaram a empurrar o carro para fora da garagem – que felizmente não era subterrânea – e deram-lhe o impulso necessário para que a gravidade fizesse com que o veículo acelerasse silenciosamente rua abaixo.
Engatei a marcha e, quando o carro havia desenvolvido uma velocidade suficiente para a manobra, girei a chave tirei o pé da embreagem. O motor ligou, soltei um breve grito de felicidade e acelerei meu veículo até a loja de baterias. Após alguns testes com equipamentos que pareciam ter saído de um episódio de E.R., o atendente da loja me informou que a bateria não tinha carga alguma e que o percurso até meu trabalho poderia insuficiente para fazer com que ela recuperasse condições ideais de uso.
Mas, ao mesmo tempo, ele disse que não achava que fosse o caso de comprar uma bateria nova, porque a minha ainda estava com relativamente pouco uso, e dependia apenas de uma recarga para funcionar normalmente. A bateria teria que ficar na loja durante quatro ou cinco horas para a recarga e o atendente cordialmente me ofereceu uma bateria da loja para que eu usasse durante o período em que a minha estivesse com eles. Rapidamente, ele instalou a reposição, eu agradeci e fui trabalhar.
Quando voltei para casa, a loja já estava fechada e no dia seguinte, tive que ir para a agência antes que ela abrisse, o que impediu que eu fizesse a troca das baterias. Liguei durante o dia avisando que eu achava que não conseguiria chegar à loja antes do horário de fechamento e eles me disseram que isso não era problema e que a loja abriria sábado a partir das 8 horas da manhã. Achei isso perfeito, porque meus planos para o sábado eram deixar o carro na concessionária para vender logo na parte da manhã, e fazer a troca da bateria logo cedo não atrapalharia em nada meu programa para o dia.
Chegando em casa naquela sexta, tirei todos meus pertences do carro e me certifiquei de que não havia esquecido de nada. Horas depois, enquanto eu dormia tranqüilamente, meu fiel automóvel maquinava sua vingança em silêncio.
Acordei cedo no sábado. O sol brilhava e nem parecia que estávamos em pleno inverno. Como eu sabia que voltaria logo, coloquei apenas uma camiseta e dispensei blusas, casacos e afins. Avisei minha esposa que estaria de volta logo, que hoje o dia estava propício para almoçarmos em tal restaurante e que ela me aguardasse. Desci até a garagem e saí com meu carro pelo portão pelo que eu acreditava seria a última vez.
Cheguei 9h15 na loja de baterias e fui prontamente atendido. Tiraram a bateria emprestada do meu carro, localizaram a minha (devidamente etiquetada) em uma estante e fizeram a instalação em poucos minutos. Agradeci, paguei o valor cobrado pela recarga e liguei o carro, que pegou sem problemas. Radiante, saí com meu carro pela cidade e decidi que seria uma boa idéia lavá-lo antes de tentar vendê-lo.
Eu não deixava meu carro em um lava-rápido há algumas semanas, o que para algumas pessoas é algo inadmissível. Mas, enquanto eu me orgulho de minha atitude de desprendimento em relação ao que a sociedade impõe no quesito “meu carro, minha vida”, para a maioria dos meus amigos, isso simplesmente significa que eu sou um porco.
O fato é que, apesar disso, eu tinha um mínimo de consciência de que um carro imundo (como o meu estava) poderia facilmente abater algumas centenas – ou milhares – de reais do preço que a concessionária iria me oferecer. Então decidi unir o útil ao agradável. No caminho para a concessionária, eu passaria na frente de um shopping center que possui um sistema de lava-rápido. Enquanto a eficiente equipe de lavadores se empenhava em resgatar a cor e brilho do automóvel que estavam enclausurados por um sarcófago de poeira e dejetos de aves, eu aproveitaria para passear no shopping, comprar algumas revistas e tomar um café. Em duas horinhas, eu estaria saindo pelo estacionamento rumo à concessionária.
Deixei o carro com o atendente do lava-rápido, peguei a ficha e vagei pelo shopping morosamente. Comprei algumas revistas, li uma delas calmamente enquanto tomava alguns cafés e, na hora combinada, desci para retirar o carro. Encontrei o mesmo sarcófago de poeira e dejetos de aves que eu havia deixado no local há duas horas. Do lado dele, estava um atendente de semblante muito preocupado,e fui tomar satisfações com ele.
“Ei! Vocês não lavaram meu carro? O que aconteceu?”
O atendente nervosamente me informou que, no momento em que foram ligar o carro, ouviram um som nada saudável vindo de dentro do capô. Ele piscava compuslivamente, algumas vezes por segundo, o que provavelmente era um tique que tinha em momentos de tensão, o que tornava a conversa ainda mais tensa e desconfortável.
“Então... na hora que eu liguei o carro, a mangueira do radiador estourou toda. A gente nunca tinha visto isso acontecer. Foi só virar a chave e veio uma fumaceira saindo de baixo do capô. Acredita numa coisa dessas?”, perguntou em meio a uma avalanche de piscadas nervosas.
Ele me mostrou o que restava de uma mangueira de borracha preta, de uns 10cm de comprimento, completamente arrebentada. Era como se tivessem pego a mangueira do carro e a enchido de bombinhas de festa junina. Sem entender como uma mangueira simplesmente explode só de ligar o carro, segurei o retalho de borracha na mão, talvez esperando que ele mesmo se manifestasse sobre seu rápido, porém apoteótico, falecimento. Mas quem falou foi o atendente.
“Mas ó... falei aqui com o Paulo e ele disse que se o senhor trouxer uma mangueira nova, a gente instala rapidinho, viu?”, disse ele de forma conciliatória.
Segurando a mangueira dilacerada na mão, eu já estava mais indignado do que surpreso.
“Como assim se EU trouxer uma mangueira nova? Eu nem sei o que é isso! Nunca vi uma mangueira de radiador na minha vida. Quando foi que aconteceu isso?”
“Ah, foi cinco minutos depois que o senhor saiu... a gente até pensou em ligar pra avisar, mas o senhor esqueceu de deixar seu número de celular com a gente... então...”, respondeu ele quase deixando implícito que a maior parcela de culpa era minha e não dele.
“Mas isso faz duas horas! Por que vocês não mandaram comprar outra mangueira dessas no momento em que aconteceu? Eu pagava. “
“É que a gente não sabia se o senhor ia querer que a gente comprasse.”, explicou entre piscadas. “De repente a gente compra e o senhor não queria que comprasse... aí como é que fica?”
“Quanto custa essa bosta? Você sabe?”
“Olha... o Paulo disse que não passa de R$20,00.”
Era quase meio dia. Isso tudo já havia estragado meus planos de chegar em casa a tempo do almoço. Então decidi armazenar a raiva em um lugar de mais difícil acesso do meu cérebro para poder lidar com a situação da maneira mais lúcida e eficiente possível.
“Olha. Se vocês sabem como trocar isso, eu compro a porra da mangueira agora. Onde eu encontro uma?”, perguntei, minha paciência se esvaindo a cada segundo.
“Então... do outro lado da avenida do shopping tem uma loja de auto-peças que com certeza tem isso. Se o senhor quiser dar uma corridinha até lá...”, sugeriu ele.
Dei a tal “corridinha” pela passarela que cruza a avenida e encontrei a loja de auto-peças na mesma quadra. Felizmente, eles tinham uma mangueira de radiador, exatamente do tipo que eu precisava (se é que existe mais que um tipo de mangueira para radiador, sei lá...).
Voltei para o shopping com minha mangueira nova e entreguei-a para o atendente, que tentava me tranquilizar dizendo que seria muito rápido, que eu não tinha que me preocupar, que era só ele instalar a mangueira e ele lavaria o carro na seqüência. Tomei o cuidado de deixar o número do meu celular com ele, para o improvável caso de alguma coisa acontecer, e decidi aproveitar que estava ilhado no shopping, para almoçar enquanto esperava.
Escolhi um restaurante agradável, sentei em um lugar sossegado e me refugiei nas revistas que havia comprado enquanto bebericava um dry martini ou um chopp e comia sem pressa, saboreando cada garfada. Os minutos passavam e meu celular permanecia em silêncio. Tomei um café, paguei a conta e, como quase duas horas haviam se passado, decidi que seria prudente fazer uma visita ao lava-rápido. Afinal, se não haviam me ligado ainda, certamente não demorariam e, caso estivessem no estágio final da lavagem, minha presença incômoda provavelmente aceleraria a equipe a terminar o serviço o quanto antes.
Cheguei ao lava-rápido e fui recepcionado pelo meu bom e velho automóvel, impecavelmente imundo. Sei que talvez a raiva tenha distorcido um pouco a imagem que tenho na minha memória sobre este episódio, mas nada me tira da cabeça a sensação de ver meu carro esboçar um quase imperceptível sorriso com seu capô no momento em que me viu chegando, e ainda hoje ouço o som da sua “voz” zombeteira murmurando para um dos funcionários do lava-rápido:
“Hehehehe... olha a cara dele!”
O atendente veio correndo em minha direção para se justificar. De novo. Nova sucessão de piscadas em alta velocidade.
“O senhor não vai acreditar! (pisca pisca pisca) Aconteceu um problema aqui, (pisca pisca) mas a gente já tá resolvendo! (pisca pisca pisca)”, disse ele gaguejando.
“Problema? Que problema? Por que meu carro tá sujo ainda?”
“Então... sabe o que é? A gente... tipo... perdeu a chave do carro... e não temos como empurrar ele até a área da lavagem... então...”
Durante um breve momento, ficamos um olhando para a cara do outro em completo silêncio e eu só ouvia (ou pelo menos acho que ouvia) o quase imperceptível, porém incrivelmente desconcertante, som das pálpebras do atendente se abrindo e fechando num ritmo estonteante.
Eu ia quebrar o silêncio com um sonoro palavrão, mas, antes que eu pudesse, ele se adiantou:
“Mas o senhor não se preocupe! Já chamei o chaveiro daqui do shopping e ele disse que isso é jogo rápido! Ele já desmontou a fechadura da sua porta e disse que faz uma cópia rapidinho.”
“Não acredito nisso... Por que você não me ligou?”
(pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca pisca)
O atendente parecia não ter entendido minha pergunta. Após refletir sobre isso um tempo, respondeu com um tímido:
“Olha... o senhor não se preocupe! Já chamei o chaveiro daqui do shopping e ele disse que isso é jogo rápido! Ele já desmontou a fechadura da sua porta e disse que faz uma cópia rapidinho.”
Fiquei por lá mesmo, para ter ao menos a sensação de que agora as coisas fluiriam de maneira eficiente. Nem isso consegui ter. Primeiro o chaveiro voltou com a fechadura da porta do motorista, alegando que não estava conseguindo tirar o molde porque a fechadura estava gasta, mas que provavelmente a da porta do passageiro estaria em melhores condições.
Ele desmontou a fechadura, saiu correndo e voltou 45 minutos depois, com a descoberta que era impossível fazer um molde adequado com a segunda fechadura também. Aí recorreu à da ignição, também sem sucesso. Como derradeira e desesperada tentativa, retirou a tranca do porta-malas e, para alívio de todos que só queriam que eu fosse embora daí, voltou uma horinha depois com uma nova e reluzente chave.
O atendente me perguntou (mais por educação mesmo) se eu ainda queria que lavassem o carro, mas eu realmente não aguentava passar mais um único minuto naquele lugar. Então decidi que levaria o carro sujo mesmo até a concessionária, mesmo tendo consciência de que isso poderia ser prejudicial na hora da avaliação. O cansaço tem uma capacidade peculiar de aumentar seu grau de conformismo e costuma facilitar a escolha da opção mais “fácil”, mesmo quando ela é também a mais burra. Então eu, porco e burro, me sentei pelo que eu imaginava seria a última vez no banco do motorista do meu carro e inseri minha praticamente virgem chave na ignição do meu carro.
Se minha vida fosse um filme do Quentin Tarantino ou do Guy Ritchie, no momento em que eu girasse a chave, a cena pararia bruscamente e o telespectador, seria levado a um flash-back, onde seria revelando o que de fato havia acontecido antes da minha chegada ao shopping. Claro que, como minha vida não é um filme, só fui descobrir o que tinha ocorrido dias depois.
O fato foi que, quando eu parei com meu carro na loja de baterias pela primeira vez, detectaram que a minha bateria precisava de uma recarga e gentilmente me cederam outra para que eu pudesse circular enquanto eles se encarregassem de recuperar a minha.
Gostei da atitude. Teria gostado ainda mais se eles não tivessem simplesmente colocado minha bateria em uma estante e se esquecido de recarregá-la. Quando cheguei pela manhâ do sábado, eles efetuaram a troca e, como eu tinha andado um pouco com o carro até chegar à loja, a bateria tinha um mínimo de carga para dar a partida.
Com isso, cheguei ao shopping sem problemas. Mas quando o chaveiro do shopping foi obrigado a desmontar as fechaduras das portas ou da ignição para tirar o molde, a porta do meu carro se manteve aberta, o que automaticamente ligou a luz interna do veículo, o que automaticamente drenou toda a já pouca carga que a bateria ainda tinha. É por isso que, quando girei a chave no contato para sair do estacionamento, aconteceu o óbvio.
Nada aconteceu. Tentei de novo e, assim como havia acontecido há dois dias, era como se a bateria estivesse arriada de novo. O que era impossível, pois ela havia sido recarregada há poucas (à essa altura muitas) horas. Após bater no volante com um misto de frustração e desespero, saí do carro e me deparei com o atendente, que também parecia não acreditar no que estava acontecendo. Ao menos as piscada nervosas haviam diminuido seu ritmo frenético, já que desta vez pelo meno ele não tinha culpa.
“Acho que sua bateria morreu.”, disse ele demonstrando uma capacidade de dedução ímpar.
“Não pode ser...”, falei, inconformado. “Troquei hoje de manhã. É impossível!”
“Olha. Meu carro tá logo ali... o senhor não quer que eu traga ele pra cá e a gente tenta fazer uma chupeta pra ver se pega?”
O que eu mais queria era sair daí e levar meu carro à concessionária. Já era começo de noite e eu nem sabia se a encontraria aberta ainda, mas estava tão determinado em resolver este assunto naquele dia, que nem me dei conta de que carros imundos que não conseguem ligar sem ajuda externa não são exatamente objetos de desejo de um comprador de veículos.
Mas, naquela hora, o que eu queria era me livrar do problema. Então utilizamos os cabos que o atendente tinha no carro dele para conectar a bateria dele à minha. Deixamos os carros ligados durante alguns minutos, o suficiente para dar um mínimo de carga na minha bateria, agradeci e finalmente acelerei pela rampa do estacionamento do shopping, pronto para a última etapa do meu calvário: a concessionária.
Ao sair do shopping percebi que talvez a ida para a concessionária não seria tão simples assim. Logo na cancela do estacionamento, o carro começou a falhar, obrigando-me a acelerar violentamente para evitar que o carro morresse.
Na hora, imaginei que isso fosse um problema com a bateria. De repente eu não tinha deixado carregando o suficiente, de repente a bateria estava com defeito, de repente os cabos estavam soltos... e, de repente, eu me encontrei dirigindo por uma avenida lotada, quase 20h00 de um sábado, com um carro que engasgava a cada nova bombada no acelerador. Ou seja, para manter o veículo em movimento, eu teria que permanecer em movimento o tempo todo, porque se eu parasse, o carro poderia morrer a qualquer minuto, e eu sabia que minha bateria não teria carga suficiente para ligá-lo de novo.
Quando se dirige nessas condições, em que não pode parar de acelerar em hipótese nenhuma, você sempre acaba tendo que parar. E sempre é atrás de um carro que pára quando percebe que o semáforo acaba de ficar amarelo. Em outras palavras, não teria custado nada ao cidadão acelerar um pouco e permitido a sua passagem. Provavelmente, é o que ele faz todo dia. Mas hoje, ele decide que vai parar.
Evidentemente, foi o que aconteceu neste dia.
Por mais que eu tentasse manter os giros do motor o mais alto possíveis, o carro simplesmente jogou a toalha e morreu quando chegamos a um farol e o carro da frente – que já vinha lento – decidiu parar na luz amarela. O carro engasgou e morreu. Girei a chave algumas vezes e a bateria não respondeu.
Pela terceira vez em três dias, meu carro não ligava.
O semáforo ficou verde. Apertei automaticamente o botão que liga o pisca-alerta e pulei para fora do carro para pegar o triângulo do meu porta-malas, tendo meu corpo “agasalhado” por uma fina camiseta de algodão confrontado com o congelante frio de uma noite paulistana no inverno de agosto. Não é muito agradável. Mas o desespero de saber que seu veículo está estacionado bem no meio de uma via pública, à noite, em uma curva cega, em um local que não era exatamente um dos lugares mais bem-freqüentados da cidade.
Carros desviavam de mim e evitavam meu veículo enquanto eu fazia as vezes de uma chicane humana, percebi que ali não era um lugar muito inteligente para estacionar. Felizmente, apareceu um grupo de garotos de rua, que vieram me perguntar se eu não queria empurrar o carro para cima da ilha central da avenida. Eles me ajudaram e, em poucos segundos, meu carro estava fora da avenida. Quase não deu tempo de agradecê-los e eles se foram.
Peguei meu celular e liguei para a seguradora do carro. Após identificação, a atendente me perguntou qual era o problema.
“Meu carro parou aqui, de repente, na Vital Brasil, próximo à Ponte Eusébio Matoso.”, informei.
“Seu carro está com combustível?”, perguntou ela de forma automática.
“Sim. Ele começou a engasgar violentamente aqui na ponte, e eu ficava mantendo o motor no giro mais alto possível para evitar que morresse, porque minha bateria tá com problema também, sabe?”
“E o carro não liga mais?”, indagou sem esboçar um mínimo de interesse real pelo meu problema.
“Não, nada.”, respondi desolado.
Ela então me pediu que informasse exatamente onde eu me encontrava, para que ela pudesse mandar um mecânico ao meu socorro. Ela me garantiu que o mecânico chegaria em no máximo 20 minutos e, quando desliguei o celular, me dei conta do frio que fazia naquela noite. Entrei no carro, mas, como havia baixado o vidro elétrico para liberar a chancela do estacionamento do shopping e agora me encontrava sem carga na bateria, eu não tinha como subí-lo. Olhando ao redor, vi um boteco do outro lado da avenida e decidi me refugiar lá enquanto a cavalaria não chegava. Até porque ninguém teria como roubar o carro, a não ser que usasse um guincho. E se existisse algum ladrão que se desse ao trabalho de passear pela cidade de noite com um guincho, procurando por carros para roubar, é impossível que ele fosse suficientemente burro para roubar logo o meu.
Atravessei a avenida sendo açoitado violentamente pelo vento congelante, que uivava de maneira espectral e sinistra, me lembrando do quanto eu havia sido imprudente em não trazer uma blusa: “buuuuuuuuuuuuurrooooooooooo... buuuuuurroooooo....”
Cheguei no boteco, provavelmente o local mais deprimente, sujo, delapidado e desagradável dentre todos os estabelecimentos voltados à venda de alimentos e bebidas, e pedi uma cerveja para o caixa. Algumas poucas e alcoolizadas pessoas se sentavam deprimidas no balcão, olhando para mim com um conflitante misto de curiosidade e indiferença enquanto tomavam seus conhaques ou rabos-de-galo.
Mais para o fundo do bar, dois travestis que pareciam o Didi imitando a Maria Bethânia naquele episódio dos Trapalhões conversavam sobre a vida, enquanto um homem cochichava insistentemente no ouvido de uma mulher de meia idade que evidentemente estava perdendo a paciência. Para acrescentar ao clima, o volume do “som ambiente” no local – um misto de forró com brega cantado de forma anasalada e acompanhado por um teclado de churrascaria – havia sido cuidadosamente programado para estar só um pouco alto demais, causando um certo desconforto aos clientes (imagino), mas não o suficente para justificar o trabalho de ter que pedir ao caixa que ele abaixasse o som. Pela foto, vocês percebem que, durante o dia o lugar já não é lá grande coisa... imaginem de noite.
O cenário era tão desalentador que nem tinha terminado de tomar minha cerveja quando pedi outra e decidi enfrentar o frio, esperando pelo mecânico dentro do meu carro de vidro aberto. Pelo que pareceu uma eternidade, esperei, e quando já perdia o que ainda me restava de esperança, uma moto estacionou do meu lado e vi pelo logotipo no baú que era o mecânico da minha seguradora.
Simpático, ele logo quis saber qual era o problema e imediatamente abri o capô. De cara ele já me alertou que minha bateria estava completamente sem carga, mas ele tinha uma na moto dele que permitira que a minha recarregasse o suficiente para chegar até minha casa. Aí, na segunda, eu iria até a loja de baterias na qual eu havia deixado meu carro para ter mais informações sobre o porquê desse problema todo. Ele conectou a bateria dele na minha e pediu para que eu desse partida no carro. Pegou. Abri um sorriso de orelha a orelha, por saber que dentro de alguns minutos eu estaria em casa, mas este sorriso logo veio por água abaixo quando o carro começou a dar sinais de que estava falhando de novo. Até que morreu de vez. O mecânico olhou para o motor, levantou uma de suas sobrancelhas e se manifestou:
“É... seu problema não é só bateria não. Faz tempo que ele tá engasgando desse jeito?”, perguntou.
“Não... só hoje. Começou quando eu estava saindo do shopping. Era só eu aliviar do acelerador que ele engasgava. Até que parei num farol e ferrou de vez.”
Ele pegou uma lanterna para que pudesse enxergar melhor o antro do mal que se escondia por debaixo do meu capô. Mexia aqui, mexia ali, pedia para que eu segurasse a lanterna para ele, grunhia tentando alcançar alguma coisa nas entranhas do motor, sumia por debaixo do carro e pedia para que eu iluminasse isso ou aquilo... foi assim durante o que me pareceu cinco ou seis horas, mas que de fato deve ter durado usn quinze minutos.
“Olha. Tô achando que é vela”, disse ele com um ar grave.
Fiquei olhando para ele, pensando em que loja de auto-peças encontraria aberta às 22h30 de um sábado imaginando como ele conseguirira rebocar meu carro até minha casa de moto. Felizmente, ele continuou e eu nem tive tempo de perguntar.
“Se for isso mesmo, eu tenho algumas aqui na moto. Mas se isso não resolver, aí vamos ter que chamar um guincho.”
Só a idéia de ter que ficar esperando por um guincho fez com que meu estômago contemplasse a possibilidade de se rebelar e fugir pela minha boca, mas felizmente ele pagou pra ver e aguardou dentro de mim até que o mecânico tivesse efetuado a troca da peça.
Ele penou para conseguir, mas finalmente instalou a peça nova e me pediu para que eu tentasse ligar o carro. Girei a chave esperando pelo pior, claro, mas ouvi o ronco do motor, forte, imponente e acolhedor. Ele sugeriu que observássemos o funcionamento do motor durante uns 15 minutos, só para ter certeza de que o problema não se manifestaria novamente.
Concordei, mas fui correndo para o boteco que havia me acolhido de forma tão peculiar há algum tempo e pedi mais duas latinhas de cerveja. Voltei ao mecânico e ofereci uma para ele.
“Sei que não é da sua conta isso, mas só a idéia de que eu vou conseguir chegar em casa hoje já é suficiente para um brinde.”
Ele olhou para a lata, sorriu e disse:
“Bom... eu não devia, né? Mas quer saber? É sábado, tô encerrando minhas atividades por hoje e pelo visto o senhor merece tomar uma pelo dia de cão que teve, né? Te acompanho sim!”
Tomamos as latinhas enquanto falávamos de amenidade e aguardávamos o motor se rebelar. Mas ele não se rebelou e, depois de um tempo, o mecânico falou que achava que se fosse acontecer alguma coisa, já teria acontecido. Ele deixou seu número de celular comigo, para o caso de algum outro desastre durante o caminho até minha casa, mas felizmente isso não se fez necessário.
Paguei pela peça, entrei no carro e fui tranqüilamente para casa, de onde, percebo hoje, nunca devia ter saído naquele dia.
Não usei o carro no domingo, mas segunda fui tirar satisfações na loja de baterias e foi só aí que descobri o que eles haviam se esquecido de fazer a carga.
Eu devia ter aprendido com os eventos deste trágico dia de agosto. Mas na quarta-feira daquela semana, decidi que eu não era do tipo que desiste de suas convicções e resolvi sair da agência na hora do almoço para deixar meu carro na bendita concessionária. Meio dia em ponto eu estava no meu carro, recém-lavado, saindo do estacionamento do prédio. Um outro carro estava na minha frente, esperando o momento certo para entrar na avenida que, a essa hora, estava com trânsito relativamente intenso. Fiquei olhando pelo retrovisor para a fila de carros que seguia impedindo nossa saída. Até que detectei um espaço e acelerei. O carro da frente não. O baque seco da batida foi seguido pelo som do vidro da minha lanterna se espatifando pelo chão. Saí do meu carro e a moça do carro da frente saiu do dela. Constatamos que no carro dela não havia acontecido nada e que no meu, além do farol dianteiro direito, o capô precisaria de funilaria. Nem trocamos telefones, visto que a culpa era toda minha e que o carro dela não havia sofrido um único arranhão.
Ela se foi rumo a onde quer que estivesse indo. Eu dei meia-volta e retornei ao estacionamento da agência, do qual havia saído nem cinco minutos atrás, e liguei para o pessoal da agência para descobrir em que restaurante eles tinham ido almoçar.
Carro 2 x 0 eu.